segunda-feira, 6 de outubro de 2008

OS AMANTES

Por Andreas Müller


Madrugada de segunda-feira. Não há ninguém por perto. Tudo que resta aqui, na Praça da Matriz, são os escombros das eleições municipais. Santinhos, bandeiras e adesivos jazem por toda a parte, colados ao chão, esfarelados pela umidade. E ainda há este silêncio tristonho no ar...
No paço central, as estátuas de bronze gesticulam para o nada, com mãos dramáticas das quais ainda pingam restos de chuva. Ninguém ousa caminhar por aqui numa hora dessas. Ninguém, a não ser eu e ele, meu mais fiel amigo, que neste momento se detém num poste e fareja-lhe cada entalhe, buscando o que parece ser um lugar altamente estratégico para urinar.

Há tempos que gosto de passear com meu cachorro pelas madrugadas da Praça da Matriz. Agrada-me esta sensação de abandono, este silêncio de festa acabada que contrasta com a barulheira diuturna dos carros e dos vendedores de pipoca. Segurança nunca foi um problema por aqui. As únicas ameaças são os mendigos, muitos deles tão velhos e trôpegos que mal conseguem balbuciar um palavrão. Além do mais, há sempre um policial rondando o Palácio Piratini, imagino que poderei chamá-lo no dia em que algo perigoso cruzar o meu caminho. Então seguimos despreocupados, eu e o cachorro em nosso passeio madrigal, matando o tempo ou deixando que ele nos mate um pouco mais, tudo depende do ponto de vista.

Desta vez, porém, não estamos sozinhos.
De longe, na escuridão, avistamos a silhueta de um casal. Ele e Ela, vamos chamá-los assim, estão de pé, escorados em um banco próximo da Assembléia Legislativa. São amantes. Não são namorados, nem noivos, nem marido e mulher. São amantes, vítimas de um desses amores clandestinos e docemente proibidos. Nunca os vi na vida. Mas sei que são amantes porque se portam como amantes; porque não têm tempo a perder; porque se amam no desconforto improvisado de uma praça em plena madrugada; e porque se abraçam assim, com fervor e urgência, como se quisessem adiar uma despedida dolorosa e inevitável. Ela deita a cabeça no peito dele e fica se balançando ao som de uma balada imaginária. Ele a engancha com força, chega a levantá-la um pouco do chão, depois espalha os dedos por debaixo dos cabelos dela. Estão ambos submersos no momento. Típico de amantes. Tocante.

O cachorro percebe a presença deles e começa a latir. Ela dá um pulo, assustada, e Ele ergue o pescoço para ver o que está acontecendo. Levanto a mão como quem pede desculpas e puxo a guia de volta, ralhando com o cachorro numa tentativa de deixá-los em paz. Mas agora é tarde, o clima se desfez. Ele fala algumas coisas, confere o relógio. Ela responde chorosa, reclama de algo. Beijam-se com devoção duas, três vezes, Ele segurando o rosto dela. Separam-se. Ele caminha em direção ao Teatro São Pedro, passos rápidos e decididos. Passa ao meu lado, tira um celular do bolso e faz uma ligação. Entra no táxi falando: “Amor? Sou eu. Tive de fazer ronda dupla hoje, mas já estou indo...”. Veste farda da Brigada Militar.

Lá em cima, Ela continua parada, contemplando o amante que se vai dentro do táxi. Aos poucos, começa a se arrastar em direção à Av. Duque de Caxias. Caminha devagar, observando os santinhos jogados no chão, absorvida pelo amor clandestino que ilumina seus domingos, mas que sempre acaba lhe escapando das mãos. Consigo vê-la na esquina, caminhando cabisbaixa sob as luzes amarelentas do Palácio Piratini. Veste uma camiseta do Grêmio.

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