terça-feira, 11 de novembro de 2008

A VERDADEIRA FELICIDADE

Por Andreas Müller


São 5h40min da manhã e sol está começando a despertar sobre o pampa uruguaio. A estrada aqui é um deserto em linha reta, ladeada apenas pelos imensos trigais que o vento acaricia vez em quando, preguiçoso. Dentro do ônibus, a maioria dos colorados dorme profundamente – as cabeças pendentes sobre os ombros, as pernas mal encolhidas sobre bancos e bandeiras. Rumamos todos para La Bombonera, a Meca decadente do futebol sulamericano, confiantes de que desta vez o Inter resistirá ao bumbar opressivo de La 12 e honrará as coroas espalhafatosas de seu brasão com uma atuação digna ante o Boca.

Chega a ser insensato: deixar a família e as pendências do trabalho em Porto Alegre e agüentar 20 horas de estrada apenas para ver o Inter jogar contra o Boca Jrs – justamente o Boca, contumaz carrasco colorado na Copa Sulamericana. Se ainda fosse o São Paulo FC, cliente fiel em mata-matas, vá lá. Mas não: é o Boca, um dos poucos times que nunca se apequenam diante do Inter. Nada impede que estas pessoas desembarquem na Bombonera apenas para testemunhar um novo fracasso do Inter, uma edição 2008 do “apagão” colorado. Se a escrita for mantida, aliás, é provável que amanhã este ônibus tenha de carregar de volta para o Brasil um bando de colorados tristes – ansiosos por chegar em casa, tomar um banho e esquecer a tremenda indiada em que foram se meter.

Mas seguimos adiante, com a esperança de que tudo será diferente desta vez. Não há ninguém nervoso ou aflito com o jogo de logo mais. Quase todos dormem o sono dos justos, tranqüilos, certos de que o Inter de 2008 já não é mais aquele de 2004 e 2005. Os poucos que já acordaram conversam baixo entre si, como uma família num café da manhã. Alguém no banco de trás comenta sobre as atrações de Puerto Madero e os planos de voltar a Buenos Aires no final do ano, com mais calma, talvez se o dólar baixar. Uma moça na primeira fila se mantém fixa na estrada, absorta, admirando os trigais como quem toma um vinho diante da lareira. E há aqueles dois que agora matam o tempo resgatando memórias perdidas sobre o Inter, tão obscuras que já soam engraçadas – lembra quando o Inter ficou devendo dinheiro àquele macumbeiro que jogava balinhas em torno do gramado?

Lentamente, os risos fazem acordar todos os passageiros.
Chegamos à aduana e os fiscais de imigração não fazem muita questão de disfarçar os pedidos de “regalo”. Na fronteira do Rio Grande do Sul com o Uruguai, a coisa havia sido bastante tranqüila: oito dólares e um litrão de Fruki bastaram para deixar a senhora gorda da alfândega toda faceira. Mas aqui, em Paysandu, na divisa entre o Uruguai e a Argentina, a situação é mais complicada. O chefe da fiscalização ergue os braços e esfrega os dedos no gesto universal de quem pede dinheiro. Preço inicial: 60 dólares e uma camiseta do Inter. É pagar ou esperar – sem o “incentivo”, a liberação pode demorar até cinco horas. Dentro do ônibus, todos se entreolham, desconfiados. Ninguém quer abrir mão de sua camiseta mais amada. O impasse prossegue até que um garoto oferece a sua InterSports, um misto de camiseta de surfista com símbolos estilizados do Inter. O guarda ergue a camiseta no ar, examina-a dos dois lados e então sorri: o ônibus pode retomar a caminho. Alívio e ziriguidum para comemorar.

Ainda faltam entre quatro e cinco horas para que a Grande Buenos Aires comece a ocupar as laterais da estrada. Mesmo assim, à medida que o ônibus avança, vamos sendo tomados por uma estranha sensação de alegria e bem-estar. Aqui, com outros 50 colorados de todas as idades e profissões, é como se cada um de nós fosse parte de uma única e inabalável família. Há este senhor de 63 anos que até agora não falou com ninguém, há a mulher que deixou o marido e o filho em casa e se meteu sozinha na excursão e há o garoto – um entre tantos – que cedeu a camiseta ao ganancioso fiscal da fronteira. Mas todos se sentem em casa, seguros e completos, como se fossem velhos amigos. Todos compartilham da mesma devoção pelo Colorado. Todos são capazes de enfrentar dias de estrada, com todos os seus desconfortos, buracos e burocracias, apenas para ver o Inter jogar por míseros 90 minutos.

Parece loucura, mas o fato é que, aqui, dentro do ônibus que corta a paisagem bucólica ao sul do Prata, a vida parece adquirir um sentido mais digno do que pagar as contas no final do mês. Somos todos colorados, isso nos basta. Logo mais, estaremos em Buenos Aires e a verdade é que, pensando bem, o resultado do jogo na Bombonera nem tem tanta importância assim. O que realmente nos faz felizes já está aqui conosco, dentro do ônibus, as cabeças pendentes sobre os ombros, as pernas mal encolhidas sobre bancos e bandeiras.

* Escrito na estrada, na madrugada de quarta para quinta-feira, véspera da partida entre Boca Jrs. e Internacional pelas quartas-de-finais da Copa Sulamericana.

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