terça-feira, 9 de dezembro de 2008

QUINZE SEGUNDOS

Por Daniel Ricci Araújo


Vive-se uma vida em um minuto.
Mais de metade de La Plata encontra-se aferrada à goleira de Figueroa, defendendo-a com unhas e dentes. Trinta e oito anos após sua última conquista, milhares de fanáticos do Estudiantes, vivos, mortos e recém-nascidos acotovelam-se perante a meta do raio de sol de 1975 com a tenacidade de uma falange espartana. Sua presença nos desesperançava e já ofendia aquela entidade lendária do Inter: não haveria rastro de luz a nos guiar na escuridão da noite? Os argentinos estão firmes. Duríssima, a coisa. Calma! A bola sabe de si. Ah, sabe sim. Olha lá, vai ser agora.

O Inter respingava todas as gotas de suor, de sangue e de tudo mais que se pudesse esguichar pelo poros. O clima era quente e úmido, e a massa estrepitava. Agonia. De não mais acabar. De desesperar. De cada vez mais fazer morrer, a cada minuto que passava, pela ponta das chuteiras argentinas, a esperança da taça aos pés da goleira de Figueroa. Drama: Taison cava um escanteio maroto. D'Alessandro, o argentino fundamental e inesgotável, acena para a área, coloca-se e cobra.

A bola viaja.
Empurrada pelo pé esquerdo do castelhano, a bola faz-se esperança pelo ar. Da marca de escanteio até a glória do grito de gol e o choro de emoção, lá vai ela. Vá junto, colorado. Pelo mesmo ar que Valdomiro remeteu ao Capitão dos Andes a cabeçada do primeiro de tantos títulos, lá vai a bola pelo caminhos aéreos do Beira-Rio: santos lugares, esses todos. E lá vai ela. E vai. Levitando. Planando. Sobrevoando o bico da área com a singeleza de quem espera encontrar uma cabeça colorada para arremessá-la com fúria rumo ao gol. O estádio vibra e sofre, mas a bola quer entregar-se à massa. A bola parece já saber seu destino. E, por isso, levita. Plana. Voa. Passa pela ponta da social e chega às primeiras barras da Guarda, e por ali começa a cair: santos lugares, esses todos. E lá vai ela. Acelera. Oscila. E pára. E desce. E pede a rede, o gol, o grito da massa.

A bola está na área.
E dentro de seu habitat, ela já está decidida. Em poucos segundos, Nilmar fará o gol responsável por fazer como que explodir o Beira-Rio em um som celestial e abafado, que se iniciará na Padre Cacique e irá transcorrendo as ruas e bairros da cidade anunciando a boa nova, o agônico gol do Inter, o único campeonato que faltava. E como eu dizia, ainda voando, a bola começa a desejar descer. E desce. E cai. E despenca. E aterrissa intencionalmente na cabeça de Danny Moraes, que desfere com a testa uma patada quase cósmica e seguramente já lendária, abrindo com aquele seu gesto quase a mesma página do álbum no qual Figueroa escrevera, com a tinta eterna do solitário raio de luz, o primeiro grande verso da vida do Inter. A bola arremessa-se rumo ao gol. O goleiro argentino, atento. Vai na bola, voa nela. Defende a danada. Que calor. Bola marota, mas decidida, sempre ela, rápida e teimosa, o estádio inteiro tem sede, não dá nem tempo de respirar. A retina petrificada, a garganta seca como que de supetão. Noite quente, falta pouco, pára relógio, cadê o gol que não sai? Cinqüenta mil gargantas secas e cansadas já não separam mais as vírgulas dos pontos, a gana do desespero. Dá no goleiro, dá na trave, volta, tudo é rápido, muito rápido, quase não se vê, Nery bate, o goleiro defende de novo, mas que barbaridade, e a massa sofrida sofre e xinga, e resmunga, entra essa bola pelo amor de Deus! Olha lá aquele senhor chorando, parece que vai morrer! Entra, bola. Entra duma vez. Marota. Danada. Pica na linha. Sobra na grama. Chuta, chuta, pelo amor de Deus. O estádio agora congela. Santos lugares, esses todos. Um choque. Câmera lenta. Engole a saliva. É agora. E então a bola cai no pé de Nilmar.

Entre a perna do grande atacante e a felicidade da massa, uma bola, dez centímetros e quinze canelas falando espanhol entre si. Durante todo o jogo, as armadilhas do Estudiantes tinham dado resultado. Carrinho, catimba, como joga esse Verón, foi pênalti pra nós ali, seu juiz, não viu? Marca, marca Bolívar. Olha que esse gol anulado deles, não sei, não... Deixaram o argentino livre e ele estufou a rede. Tchê, como gritam os castelhanos – não tá na hora de entrar o Taison? Era tanta coisa entre nós e a taça que alguns já implicavam: não ia dar. Rebobina, passa tudo pela cabeça. Câmera lenta. É agora. E se for pra pênalti, como vai ser? O Lauro é bom de pênalti, pai? Que nada, meu filho, olha o escanteio, é agora. O estádio inteiro olha para o mesmo ponto e pensa várias coisas ao mesmo tempo. A bola está no pé de Nilmar, que pensa uma só: é gol. O gol é fácil, impossível errar: irônico. Ironias do futebol: todas as dificuldades do jogo acabam com dois argentinos deitados sobre a linha da meta, Nilmar de pé com a bola e a rede escancarada, pedindo o chute. Bate, Nilmar. Só escora. Não é hora de brincar. Só escora. Pé esquerdo nela. Toquezinho: lindo! A bola viaja. Bem pouquinho, chutezinho de brincar com criança. A bola viaja. É gol do Inter. O estádio explode: se ouve na Bento, na Borges, no Morro da TV, no Campus do Vale, na Sertório, em La Plata, em Uruguaiana, em Tramandaí. Que barulho é esse, pai? É gol do Inter, guri!

A bola, agora, descansa dentro do gol. Nilmar corre, o mundo corre atrás dele. O Beira-Rio está iluminado como uma estrela reluzente no firmamento mais distante. O Beira-Rio resplandece e a torcida é feliz, sonora e emotivamente feliz. Quanto tempo se passou, alguém sabe? O urro seco da massa é ouvido pela América inteira, em bom português. Orgulho! A bola já sabia de tudo. Quietinha, dentro da rede, ela também assiste à festa. Vive-se uma vida em um minuto? Até mais. Mas para ser feliz, esses quinze segundos bastam. Quanto falta pra acabar? Acho que agora ele pede a bola. Câmera lenta. Engole a saliva. É agora. Terminou! A massa precipita-se em festa, o concreto do Beira-Rio parece que fala. A calmaria da grama, daqui em diante, guarda o silêncio da partida vencida. A alegria estalava pelo ar: santos lugares, esses todos. E a bola, agora esquecida, olhava tudo. De soslaio. Quieta e feliz.

Nenhum comentário: