terça-feira, 27 de janeiro de 2009

FABIANO, O HERÓI DAS VACAS MAGRAS.

Por Daniel Ricci Araújo


Zona norte de Porto Alegre, Estádio Passo D'Areia, último domingo.
Inter e São José estão preparados para o início de um protocolar jogo de tabela pela segunda rodada do Gauchão. De um lado, um campeão mundial e trinta e oito vezes vencedor do certame provinciano, único campeão brasileiro invicto e dono de todos os títulos que um clube profissional, estando deste lado do Atlântico, pode almejar. Do outro, o simpático São José, que tem nesta secular simpatia descompromissada, nos parece, uma de suas maiores virtudes clubísticas. Os jogadores estão perfilados, prontos, atentos, e a partida vai começar.

A Popular já saudara todos os atletas colorados e gritará depois também, registre-se, um elogioso e atualíssimo "Força, Xavante", ora pois. O rigoroso juiz agora já se prepara para o apito inicial. Luiz Fabiano de Souza, trinta e três anos de gols e noites no Dado Bier está postado no meio-campo, olhando para a frente e com a camisa já para fora do calção. Confrontando-se com o ídolo do passado, a Popular não titubeia e reedita com força o conhecido canto de uma época na qual ela sequer pensava em existir: "Uh, Fabiano! Uh, Fabiano! Uh, Fabiano!!". E que coisa, registremos isso: estamos já medindo o tempo com tal ampulheta. "Essa derrota foi antes de termos Abel", "isso era do tempo no qual a Popular não existia", "esse vice de futebol é de antes do Fernando Carvalho". Com passa o tempo, meus caros, como passa!

Mas voltemos ao jogo do domingo. Então, o estádio inteiro, escandalosamente colorado, toma finalmente conta da presença ilustre e reserva-se a mesma prerrogativa da torcida organizada – o "Uh, Fabiano" encorpa o entorno das arquibancadas e, por uns dez segundos, é a voz única e estridente a manifestar-se pela zona norte de Porto Alegre. D'Alessandro o olha curioso, Alex também. Fabiano sorri, envaidecido, e acena para a frente como se encontrasse um conhecido casual. Está um pouco tímido, talvez pela passagem do tempo que possa ter tirado-lhe um pouco do feeling, do tato necessário para conviver com a massa colorada. Perdeu um pouco do jeito, nota-se claramente, mas é quase mais ídolo hoje do que era há dez anos.

Em 1997, as torcidas da dupla – ou a maior parte delas – ainda não pensavam em aniquilar-se mutuamente. Naquela época, dez, quinze mil colorados no Olímpico (e vice-versa) eram coisa casual, não os dois mil espremidinhos de hoje, legado da atual e lamentável fase "pseudocastelhana" do nosso futebol. Pois numa tarde de agosto daquele remoto ano ainda pacífico, eu, um menino de quinze anos à época e outros dez mil ou mais colorados vimos Fabiano, o Fabiano Cachaça, o ídolo cambaleante e improvável simplesmente trucidar o Grêmio em seu próprio estádio. Quem estava lá, mesmo de depois de Yokohama, não esquece daquele dia.

Como diria Nelson Rodrigues, foi um show pessoal e intransferível. Fabiano, o ponteiro valdomiriano, acabou sendo o deus, o herói e o símbolo de uma tarde para sempre. De noventa minutos desses que podemos reviver a toda hora, seja na sinaleira ou na fila do banco. Mesmo tendo jogado muito mais tempo depois daquilo, Fabiano e 5 a 2 são sinônimos e, hoje em dia, esse feito do herói das vacas magras está polido, idealizado e reluzente como o chão do Taj Mahal. No meio da miséria da década de noventa, a simbologia daquele clássico foi, quem sabe, a melhor coisa de todas. Não há colorado que não se lembre dele sem sorrir, mesmo que de si para si. Fabiano, o herói das vacas magras. Aí está uma sentença que faz justiça ao homem.

Sim, a posterior saída de cena deu ao nosso personagem algo de cult, de mítico, como se dali extraíssemos um inesperado Macunaíma do Inter, um herói não despido de caráter mas sem aquelas seriedades passionais e dramáticas que, num Iarley ou num Fernandão, arrancam lágrimas e convulsões. "Uh, Fabiano", o ídolo? Ora, os mais novos o conhecem pelas histórias dos colorados de meia-idade, e só. O verniz da história já cobriu sua breve obra e no imaginário popular ele agora joga – e apronta – ainda mais do que quando estava em campo ou fora dele naqueles tempos.

Naquela época, os cinco gols vertidos em pleno Olímpico foram como uma prova, para os mais novos, de que ter fé no futuro era válido. Fabiano marcou dois e deu passe para mais dois. Foi responsável por uma expulsão e pelo quase fim da carreira do abnegado zagueiro Luciano. Anteontem, o temível ponta-direita de outrora até preocupou a zaga do Inter e não foi uma só vez que conseguiu envolver Marcão pelo nosso lado esquerdo.

Era o "Uh, Fabiano" de volta. De certa forma, víamos ali o orgulho solitário de um passado recente desfilando pela ponta inimiga, esbaforido e sorrindo discretamente de vez em quando. Por um instante, confesso: deu gosto vê-lo invadir nossa própria área com aquele mesmo trote esquisito de outras eras.

Vejam só o que a gente não faz por um herói das vacas magras.

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