quinta-feira, 19 de março de 2009

A QUEDA DO MURO

Por Marcelo Benvenutti

Não lembro desde quando existem a grade e os arames farpados na mureta das arquibancadas e das sociais do Beira-Rio. Desde criança recordo de, quando nem alcançava direito a altura da mureta, me agarrar na grade para me apoiar e enxergar o campo dali de perto, em cima da lateral. Dali de onde dá pra ver até a expressão dos jogadores quando de uma jogada, uma falta, um gol.

Mais longe que de quando existia a coréia, claro. Junto com a extinção da coréia, já alguns muitos anos atrás, foram extintas diversas espécies de torcedores. O fiel de guarda-chuva, aquele que não saía da coréia nem abaixo de chuva de pedra. O torcedor da mudada da coréia, aquele que ficava só no ouvido do treinador colorado, do treinador adversário, do bandeirinha, dos brigadianos, do repórter, xingava tudo e todos. O fim da coréia decretou o fim do setor mais popular e barato do estádio. Com meia dúzia de pilas o sujeito torcia, bebia uma cachaça e ainda pagava a passagem ida e volta, nem que pra isso passasse por baixo da roleta. Mas a coréia se foi e hoje os fantasmas do passado coabitam com a torcida contemporânea em meio aos cantos da popular, nome que rivaliza com a história de seu próprio significado. A popular original, morreu.

Em meio aos preparativos para receber um jogo de eliminatórias, celebridades, gente importante, Ricardo Teixeira, o escambau, a modernização chegou aos muros das arquibancadas. Das sociais já saíram. Das inferiores também sairão. Basta visitar o Beira-Rio e observar a maquete do futuro estádio reformulado. Não existe nem mesmo a mureta. Apenas um fosso, por segurança, entre o gramado e as arquibancadas. Com o fim das grades e do arame farpado muitas outras espécies de torcedores serão extintos, de forma abrupta e rasteira. Não que eu seja contra o progresso, mas me permito um certo saudosismo antecipado.

Inúmeras vezes cheguei em cima da hora do jogo e, sem paciência para procurar um lugar, ficava de pé, as mãos coladas nas grades, perto do bar do meio de campo nas inferiores, e torcia por entre os metais, levantando ou abaixando a cabeça para enquadrar melhor a jogada de acordo com o ângulo que favorecia a observação. Nas grades nada me tirava atenção. O campo estava ali na frente. Não precisava me abaixar, sentar, o placar eletrônico na minha visão, a cerveja à mão. Uma ou outra vez, alegre e bêbado, subi a mureta e fiquei de pé, me segurando no arame farpado mesmo, cantando qualquer bobagem, vibrando com uma grande vitória, um título. Um pano qualquer aparecia e ficava lá gritando. O apogeu da insanidade colorada. Outras vezes vi os torcedores exibicionistas chamando os fotógrafos. Queriam sair na capa do caderno de esportes. Subiam na mureta e faziam poses. Tudo muito prosaico, engraçado, mesmo provinciano.

Agora, a Copa do Mundo é nossa, ordenadamente sentaremos em nossas cadeiras, numeradas, e assistiremos como verdadeiros cavalheiros ingleses do século XVIII ao desenrolar dos jogos bebericando nossos cafés com adoçantes ou sucos de caixinhas. As mulheres desfilarão modelos fashions das camisetas rubras. As crianças brincarão nos vãos de acesso ou perto da muretas e abanarão para os jogadores quando estes forem fazer o aquecimento. Ao torcedor que não for possível o acesso, restará ficar em casa, como sempre foi, só que agora com o payperview em dia, vários ângulos disponíveis no controle remoto e latinhas de cerveja na geladeira. Os menos favorecidos escutarão a rádio no celular ou acompanharão os jogos na tv a cabo popular, mais conhecida como gatonet, restando a uns mais resistentes os canais piratas de sites itinerantes. Uma vez ou outra o animador de torcidas dos altofalantes do estádio fará com que a torcida inicie uma ola. Será assim. Será assim, dizem as profecias.

Os torcedores do passado, nós, não passaremos de vagas lembranças em fundos de imagens de vídeos históricos. Seremos tão anacrônicos quanto o Muro de Berlim.

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