segunda-feira, 18 de maio de 2009

CINQUENTA MIL!

Por Andreas Müller

É quarta-feira e o relógio marca nove da noite. Você bem que tentou apressar o pai e o vizinho, mas aquele primo que viria de São Sebastião do Caí se atrasou e aí está você, agora, trancado em uma procissão quilométrica de motores e buzinas na Borges de Medeiros. O trânsito não anda. Os carros avançam lentamente, um depois do outro, num arranca-e-para que é a um só tempo monótono e enervante. Pela calçada, hordas inteiras de colorados caminham confiantes com bandeiras, toucas e latões de Skol comprados a dois por cinco reais. Caminham praticamente na mesma velocidade que você, mas um pouco mais leves, até porque estão isentos dessa preocupação mesquinha de encontrar um estacionamento, um maldito lugar de descanso para esse bólido de metal, borracha e gasolina no qual você se mantém preso – algo que, por alguma razão desconhecida, a humanidade vê como conveniente.

Mas a romaria de aço avança sobre o asfalto. Lentamente, você e seu bólido vencem a curva do viaduto da José de Alencar e se alinham em direção a ele, o Gigante da Beira Rio. Quase não dá para vê-lo por cima dos ônibus e da fumaça dos churrasquinhos. Mas dá para senti-lo. Sim, lá está ele, com suas luzes que se projetam no céu e rebatem nas nuvens mais baixas, fazendo clarear um pedaço da noite. Lá está ele, com seu cheiro do asfalto úmido, o concreto cinza preso ao chão com uma solidez assustadora. Visto de longe, o Beira Rio é algo parecido com um imenso vulcão de luz. Apenas os quero-queros e os sacos plásticos ousam revoar por cima de sua boca fumegante, como que alheios à erupção iminente que está prestes a iluminar o resto desta noite – e a memória de cada um que ruma para seu seio.

O carro segue e, aos poucos, começam a surgir os flanelinhas, muitos flanelinhas, todos eles se jogando na frente de cada veículo com o ardor de um náufrago na vitrine do Montana Grill. É pro jogo? Estacionar? Você tenta ignorar, mas o seu estômago já está encolhido de nervosismo e clama por uma solução rápida. Sim, estacionar, meu amigo. Quanto? O primo de São Sebastião do Caí protesta que não vale a pena pagar R$ 20 para deixar o carro em cima do meio-fio. Mas você já não se importa mais com o carro, nem com o dinheiro e muito menos com o primo. Larga o bólido no pátio de uma borracharia, solta o freio-de-mão para o flanelinha manobrar, tira R$ 20 do bolso e segue seu rumo livre, finalmente livre em direção ao vulcão de luz.

Caminhar nas ruas a essa altura é um suplício. Todos andam a passadas largas, apressados para tomar lugar dentro do Gigante. Você acompanha a manada. Deixa-se levar pela multidão como se fosse um galho seco boiando nas correntezas de um rio escuro e tempestuoso. Olha para trás – o pai, o primo e o vizinho estão logo ali, tentando acompanhá-lo – e já começa a procurar o portão mais próximo. Qualquer um. Seu pai grita: vamos de social? Você responde: não dá mais, vamos na inferior. E assim você se mete na imensa melancia humana que tenta passar pelo buraco de fechadura do portão 6. A fila simplesmente não existe mais. As pessoas se empurram para frente e para trás e você mantém as mãos presas ao próprio peito, sentindo na nuca a respiração ansiosa do seu próprio pai – será que o velho está bem? As pessoas se ofendem, pedem para que a revista da BM ocorra com mais rapidez e você chega a se perguntar se realmente foi uma boa ter vindo hoje. E se o Flamengo ganhar? E se empatarmos? E se formos para os pênaltis?

Lentamente, você se aproxima do portão. Ergue os braços esperando pela revista da brigada – algo parecido com dois tapinhas na cintura, nada mais – e pronto, você corre para a catraca mais próxima. Antes de passar, porém, você olha para trás e descobre, surpreso, que o seu pai ficou lá atrás, discutindo com os policiais por um motivo incompreensível. Você volta e berra: mas o que te deu na cabeça de trazer um guarda-chuva pro estádio? Seu pai, constrangido, joga o guarda-chuvas num canto e é liberado. E o diabo é que você não precisava ter sido grosseiro com ele... Você e ele se aproximam da catraca, silenciosos. Ele passa primeiro, você depois. Pronto: vocês entraram. Missão cumprida. E assim, num átimo de cumplicidade, você e ele se abraçam, pedindo-se desculpas mutuamente, mas sem dizer nada. A sensação de alívio é indescritível.

Aparecem o vizinho e o primo, este berrando DÁ-LHE INTER. O barulho no corredor é ensurdecedor. Você caminha rápido e já consegue divisar as superiores do Gigante totalmente lotadas. Cinquenta mil! – é o que grita o seu pai, assombrado. Tem cinquenta mil pessoas aqui dentro! – ele repete. Você olha e concorda. Sente um arrepio, um frêmito que percorre sua espinha e o faz disparar em direção à boca do vulcão. São cinquenta mil apaixonados. Cinquenta mil doentes. Cinquenta mil ensandecidos. E você, movido a adrenalina, dá os seus últimos passos para se tornar um entre eles.

Apenas mais um entre eles.

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