quinta-feira, 21 de maio de 2009

TERREMOTO.

Por Marcelo Benvenutti

O dia foi tenso. Corrido. Buscar o filho na escola. Três anos. Deixar com a vó. Cortar caminho pela Farrapos. Buzinaço no Gasômetro. Cortar pra dentro do Menino Deus. Deixar o carro. Tomar umas latas de ceva em casa. É mais barato. Calmamente sair de casa, finalmente, lá pelas oito e meia da noite. Tomar uma saideira do outro lado do Beira. Entrar, já devidamente bêbado, no estádio quinze minutos depois das nove.

Me coloco por ali, perto da entrada do Bar 4. Mesmo que ali não tenho mais bebida, só Pepsi, o que me faz pensar, ingenuamente, como toma refrigerante essa gente. Obviamente não me passou despercebido que a revista na entrada de grandes jogos é feita com uma leve apalpada nos quadris. Nada que impedisse qualquer um, inclusive eu, a carregar um trago nos tênis, na meia, no carapinha do urso do cabelo duro. Essa lei é tão seca quanto os gols dos adversários no Inter.

O time em campo. Uma neblina de sinalizadores me impede de ver qualquer pessoa num raio de mais de dez metros. Todos tiram fotos. Posam para suas próprias máquinas. Me entedio. Não tenho rádio. Não tiro fotos. Não tenho o que fazer com as mãos a não ser cruzá-las ou enfiá-las nos bolsos. Fernandão discursa? Não escuto. A bateria da 12 não deixa pedra sobre pedra. Parecemos estar em um navio à deriva em um canal largo, profundo e enevoado.

A escalação eu já sei. Rosinei "luvinha de lã" no lugar do Magrão. Danilo no de Bolívar. Me lembro dos flamenguistas querendo se arriar em cima de nós pelo título de 1987 da Copa União. Aquele campeonato do famoso álbum e do patrocínio da Coca-Cola. Depois nos negamos a jogar as "finais" contra Sport e Guarani e nos condenaram a um mês de suspensão. "Bons" tempos da administração otomana. O comentarista na rádio de alguém (Eu ainda escuto rádio dos outros? Estou ouvindo vozes?) fala em mais um teste para o Inter provar se é bom mesmo ou não. O Inter fez tanto teste que daqui a pouco tá fazendo teste pro vestibular de inverno também. Na final de 1987, eu estava fazendo o Provão da Ufgrs. O nosso time não era ruim. Só que o Flamengo era uma máquina. Sofreram para fazer um a zero no Maraca. Ênio Andrade é o pai deles todos. Danilo na lateral? Bom seria transportar no tempo o Winck daqueles tempos. Não se fazem mais laterais direitos.

O jogo começa e depois de algum tempo outro torcedor por perto comenta: O Flamengo é o melhor time de gauchão que enfrentamos este ano. E é mesmo. Bom toque de bola. Saí jogando. Um jogador colado com cada um dos craques colorados. D'Alessandro daqui a pouco leva o cara pro vestiário junto com ele e pede em casamento. Nada que altere a tensão presa no ar, tal qual uma neblina invisível tapando minha visão. Juan dá uma de Papai Noel e Nilmar agradece e corre. Taison passou riscando pelo meio. Eu não vi. Muita gente não viu. Só a bola na rede. Não quero nem saber de placar eletrônico. A rede é o que me interessa. Os detalhes eu assisto em casa. Gol do Inter. A tensão aumenta junto com a responsabilidade.

Depois de encarar uma triste cerveja sem álcool do inferno, penso em pedir do refri dos outros. Mas não. O transe hipnótico do álcool já passou. Sobrou a adrenalina. As pernas enrijecendo paralisadas. O pescoço em movimento seguindo a bola tal qual um gato à espreita. Tal qual um Guiñazu observando a presa à distância. Guiñazu é tão rápido e certeiro em seu bote para cima dos flamenguistas que merecia um documentário no Discovery Channel ou no Animal Planet. Merecia uma série no Globo Repórter. Sérgio Chapelin narrando: Você vai ver, hoje, como Guiñazu dá o bote nos adversários. Nossos repórteres conseguiram captar o exato instante em que El Cholo assume a forma de um puma em perseguição a uma gazela e rouba a bola do inimigo. Veja as imagens.

Mas nem Guiñazu impede que uma bela jogada rubro-negra, tramada pela direita, resulte no fatídico gol de empate deles. O gol da classificação. Do gol fora de casa. Do bendito e maldito gol fora de casa. Quando o silêncio poderia sepultar os sonhos vermelhos, eis que a massa se revolta e canta. O time cresce. As vozes se multiplicam. Por que Tite mandou entrar o esforçado Glaydson em vez do Andrezinho? Os murmúrios se multiplicam. Certa altura chega a escutar um ressonar coletivo de sussurros. Andrezinho. Andrezinho. Ele entra. Agora coloca ele, porra? Grita um. O time ataca desordenado. Só na vontade. O Flamengo é o melhor time gaúcho do Rio de Janeiro. O Flamengo é o melhor time gaúcho do mundo naquele instante. Tudo se encaminha para o despenhadeiro com Guiñazu, pumas, gazelas, sonhos, Taison. É o fim.

Mas o fim só se aproxima para aqueles que aceitam. O Inter não aceita. A torcida colorada não aceita. Guiñazu não aceita. Falta perto da área em Glaydon, aquele que não deveria entrar para entra Andrezinho. D'Alessandro se coloca próximo da bola. Bruno ajeita a barreira prevendo o chute do portenho. Andrezinho fala, só saberemos disso depois do jogo: Essa é minha. Vou fazer o gol. Só D'Alessandro sabe. Só D'Alessandro guarda o segredo momentâneo. Só ele pode prever o gol. Andrezinho cobra. Silêncio que dura décimos de segundo. Uma parte da torcida grita gol gol gol compassado. Mas não significa muito. São os que sempre gritam gol gol gol até em lateral. Bruno vai certeiro em direção ao canto esquerdo da meta. Andrezinho ainda está cobrando. Ele está cobrando até agora. Amanhã ainda estará. Não é um gol. É um momento histórico. Tchááá! Faz a bola no fundo da rede.

Sismógrafos chineses e norte-americanos registraram um pequeno tremor de terra em uma península na beira de um grande lago na altura do paralelo 30 na América do Sul por volta das três horas de Greenwich. Não existem previsões de Tsunami. Mas são grandes as possibilidades da ocorrência de uma maré vermelha.

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