quinta-feira, 23 de julho de 2009

O Bêbado e o Equilibrista.

Por Marcelo Benvenutti


Seis da manhã. Porto Alegre ainda nem amanheceu. Julho gelado. A tempertaura beira o zero nos termômetros de rua. No saguão do HPS, crianças febris. Mães desesperadas. Velhinhos carregados pra lá e pra cá por filhos insones, encarangados de frio, arrastando os pés. Familiares em transe aguardando notícias de alguém que levou um tiro do vizinho, numa rixa de gangues, foi atropelado por um carro desgovernado de um alcoólatra. Atendentes de máscaras. A paranóia da gripe suína. O caos em perfeita ordem no portal do inferno.

Em meio às tragédias alheias, um homem fala sozinho. Foi recolhido na calçada. Estava caído, bêbado, desacordado. Balbuciava palavras desconexas e não sabia dizer nem o nome ou muito menos onde morava. Sem referências, foi largado num canto do saguão até que alguém lhe desse importância. Depois de algumas horas lhe deram um cobertor amassarocado. Perto do meio-dia, um copo de qualquer líquido que fosse. Um sanduíche de outro que sobrou do almoço. Foram lhe atender às três da tarde.

Tiraram a pressão. Observaram o movimento dos olhos. A língua. Batimentos cardíacos. Fora alguma friagem que poderia se transformar num resfriado ou algo pior, o homem tinha boa saúde. A ressaca lhe batia na cabeça e ele ainda não coordenava as palavras direito. Foi quando lhe deram um café preto bem forte que sua face ruborizou e aos poucos foi tentando concatenar as idéias. Em vão.

Uma atendente social veio falar com ele. Tentar fazer com que lhe desse um nome. Um endereço. Alguém par que eles pudessem comunicar. Nada. O homem só falava em "jogar pelas laterais". Mas não me tira mais um meia pra colocar outro volante. De virada, de novo, não! A atendente preencheu o relatório e encaminhou o caso para o atendimento psiquiátrico. Aquele homem necessitava de um auxílio profissional mais técnico.

O psiquiatra de plantão tentou fazer com que a conversa entre ambos se desenvolvesse. Qual o teu nome? Nome? Não sei. Tite? Tite! Não, não é meu nome. Mas é o que me lembro agora. Tite é um treinador de futebol conhecido. Tu não é o Tite, respondeu o psiquiatra. Não sou? Ainda mais confuso, o homem levantou-se e começou a caminhar de um lado para o outro. Mas e o Sandro? Porque tirar o Sandro e não o Magrão? O que aconteceu no intervalo? A gente perdeu pro Avaí? Não. Eu não sei. O psiquiatra plantonista, cheio de outros casos para atender, preencheu a ficha do paciente com um definitivo "amnésia" de cabo a rabo na folha e mandou que o homem aguardasse.

Muito tempo depois, já noite, homens de branco o vestiram com uma camisa amarrada ao contrário. Colocaram ele numa kombi branca e o conduziram pelas escuras ruas de Porto Alegre. O trânsito intermitente. Uma chuva fria batendo nos vidros. O homem, nariz grudado na janela, ficava quieto e acuado. Não entendia o que estava acontecendo à sua volta, ensimesmado em seus pensamentos. Desceram num prédio antigo e o levaram até uma sala hermética. Outras pessoas, não com camisa como ele, assistiam sentadas a um programa humorístico. Já era quase hora da janta. Lhe deram uma injeção de tranquilizante e tiraram sua camisa. Vestido com uma roupa sem cor, o homem sentou-se do lado dos outros na sala.

Um sujeito ao seu lado o cumprimentou. Qual é o teu caso? Eu não sei. Só queria que atacassem pelos flancos, fizessem algumas triangulações bem tramadas e chegassem no ataque com cinco ou seis jogadores. Colorado? Perguntou o outro. Sim. Eu sou colorado. Isso mesmo! Eu sou colorado! Gritou nosso herói. Qual teu nome? Não sei, respondeu de novo. O outro devolveu: O meu nome é Abel. Abel Braga. Fui eu quem conquistou o Mundial pra ti. Abel? Abel! O homem pulou da cadeira e abraçou efusivamente o suposto Abel, que na verdade se chama Carlos e quando estava do lado de fora trabalhava num açougue. Tu é o cara, Abel! Tu é o cara! E caiu duro no chão, o tranquilizante já surtindo efeito.

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