sábado, 11 de outubro de 2008

A VOZ DO INTER

Por Daniel Ricci Araújo


A multidão ainda não está desperta. Faz um silêncio medieval.

Cúmplices do vazio do estádio, as faixas balançam solitárias ao sabor do vento. Ao som de cada lufada é como se elas falassem calmamente e devagar - cada uma nos oferece sua mensagem particular e imutável, linhas da história do Inter balançando pelo ar. Há bandeiras, frases diversas, dizeres os mais discrepantes entre si. O silêncio inevitável abriga as grandes verdades. “Se tu lutas, tu conquistas”. Já aqui está o povo e sua luta. Alguns dizeres encaram-nos com a calma de um velho ancião, balançando o olhar à brisa do Guaíba como se dissessem estar ali há mil anos. O Gigante oferece a perspectiva do horizonte, do infinito, mas antes do concreto estão esses mandamentos da Popular. Bela e contemplativa, desenhada em um gigante mostruário, a impassividade de Figueroa parece capaz de afrontar o céu. Bodinho, Larry, Mahicon Librelato: a calma das estampas vivas é mais forte do que tudo. A simbologia de mil gerações envolve o tecido farto do portão 7. Mas a multidão ainda não está desperta. Há um mistério a celebrar. O estádio, envolvido por esse magnetismo que o faz fascinante e único, faz suas essas coisas como se fossem elas filhas do seu próprio ventre. O estádio e sua lenda, unha e carne medidos e pesados desde o primeiro dos minutos do mundo. A vista do Beira-Rio despovoado de corpos mas repleto desse sopro de alma definitiva é uma ante-sala óbvia para concluir o mais óbvio ainda: não há transcendentalidade possível sem ausência. No seu silêncio quase inóspito, o estádio não dissimula. A vaga do Guaíba e o Gigante criaram todo o nosso mundo, e o fizeram num silêncio profano. O vento do Beira-Rio fala, atesta a verdade bíblica. Ele está lá há mil anos.


Mas a multidão ainda dorme.

Lentamente, o povo ocupa seu espaço. O ritual diuturno e já repetido desde o primeiro sol da nossa existência toma sempre a mesma forma, como se ocorresse pela primeira vez. De novo, por eras e eras, quanta gente veio ver! O povo celebrando o povo. As longas rampas, o caminhar das pessoas, o sol batendo no concreto, os grandes refletores a esticarem-se num sem fim rumo ao céu: que Deus abençoe essa sensação de pertencimento tão escancarada e repetitiva. Antes de Nabucodonosor, de Roma, antes da Mona Lisa e de Hamlet, o concreto do Beira-Rio já estava lá, em algum lugar ou ponto daquele espaço, como se estivesse esperando, aguardando, matutando às vésperas do inevitável encontro com toda a sua gente. O alarido e o movimento da massa são uniformes e quase messiânicos, e embaladas por essa procissão as juntas do Beira-Rio mais uma vez acusam: tudo estava pronto antes do mundo começar a girar.


E então o povo começa a fazer-se ouvir.

Há agora a multidão. E a multidão, em sua existência coletiva, parece que desnatura e desqualifica a entidade silenciosa que antes habitava o estádio com sua escandalosa autoridade. A turba é algo de individual e de menor por causa disso, por conta dessa sua vontade feroz de desfazer com o grito essa autoridade própria do silêncio. Ela reage e se destempera, e resigna-se, e urra, e tem um sentido único porque tem opinião, como se fosse alguém. O estádio, no domínio da massa, está desfalcado de uma espirituosidade imprescindível e anônima. Mas aí, desse silêncio afrontado, a alma impetuosa surge outra vez.


De trás da meta, mil e uma vozes juntas formam a música inevitável e dissonante. A identificação do povo a cantar nada mais é do que um tabefe na cara da trivialidade da multidão. A massa de trás do gol trombeteia sua melodia milenar. No canto, na voz agora única como uma rocha, aí está de novo a entidade, que declama estes seus versos desde o primeiros dos dias. Pelas bordas do estádio, o recital ecoa suave e alto como se fosse a melodia de uma catedral. “Figueroa”. “Cubanos”. “Portão 7. Popular”. O pano e o canto. Ao sabor do vento e sob a benção das faixas eternas, de trás do gol surge o Inter. O evangelho do Inter. Agora e mais uma vez, a voz do Inter fala. Ela está lá há mil anos. O juiz apita e o jogo inicia.


A massa agora está desperta, e o vento de sempre sopra mais uma vez.

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