terça-feira, 25 de novembro de 2008

OS DALLEGRAVES DAS NOSSAS VIDAS

Por Daniel Ricci Araújo

Nunca se vira um minuto de silêncio como aquele.
A noite estava como que clara e legível, apesar da escuridão a contrastar com a luminosidade artificial dos refletores. O Beira-Rio lotado anunciava o início de Inter x Chivas, pela semifinal de volta da Copa Sul-Americana. A luz advinda das torres que nascem acima da superior fazia com que, de lá de cima, pudéssemos quase ver as fisionomias, os braços, as mãos e os pulsos de todos os colorados presentes ao estádio. Postos os vinte e dois jogadores estaticamente em campo como se formassem as peças em um tabuleiro de xadrez, o juiz anunciou o minuto de silêncio. E, então, o estádio falou.

É verdade, e repita-se a verdade: nunca se vira – e tampouco se verá – minuto de homenagem como aquele. A despeito do silêncio obsequioso trazido pelo comum das referências fúnebres, Arthur Dallegrave, setenta e oito anos de uma vida colorada até as entranhas, recebeu um incontido e indevassável aplauso generalizado. Dispensada a dramaticidade do momento, o velho descendente de italianos obteve, após seu passamento, uma homenagem a seu estilo, alegre e até vibrante. Palmas, palmas, palmas. Pelo barulho como que orgulhoso e entusiasmado da multidão, o reconhecimento àquela trajetória que se despedia foi de um poder emotivo o qual a rigidez do maior silêncio possível só poderia invejar. Palmas, palmas, palmas. Bravo, Dallegrave!

Mas, afinal de contas, o que aplaudimos e reconhecemos naquela noite com um quê até de entusiasmo na voz? Reverenciamos somente a memória do grande dirigente perdido? De maneira alguma. Houve ali, naquele momento, e até de maneira inconsciente, o reconhecimento de uma geração a outra. As carmelitas que estudam o Evangelho conhecem a máxima sagrada e onipresente: "uma geração chega, e a outra passará". E os colorados, antes de se despedirem de um personagem, agradeceram a uma era. Eis a realidade profunda: nas olheiras e nos cabelos brancos de Arthur Dallegrave o Inter perdeu não só o homem. A velhice autoriza uma meditação infinita, uma autoridade inquestionável e todos nós, ao aplaudirmos aquele homem secular, reverenciamos o mistério da geração desaparecida. O Inter registrou ali, nos aplausos da massa, o agradecimento necessário e o passamento de uma época.

O antigo dirigente teve a sorte de ver o Inter dono do mundo, mas acrescentemos ainda à despedida o caráter lírico e dramático das ausências: quantos Dallegraves por aí perderam de ver essa glória? Quantos donos de tijolos hoje sepultos dentro do Gigante, quantos homens e mulheres que torceram nos Eucaliptos ou no campo da Rua Arlindo, quantos jovens da época dos bondes e fãs de Villalba e Carlitos não descansaram antes de Iarley e Adriano Gabiru? Ao meu avô faltou algo como uns poucos anos; a Dallegrave, sobrou tempo. Assim é a vida, e assim é também um pouco da morte. Uma geração chega e a outra passará. Os Dallegraves das nossas vidas foram todos recompensados. E a aclamação da última quarta-feira, de certo modo, também se destinou a eles.

As palmas foram estrepitosas, e não paravam: quem esteve no estádio lembra. Em dado instante, foi como se todos nós quiséssemos sim ou sim homenagear o falecido com o melhor de nossa expressão, numa torrente de orgulho tão aguda quanto rápida, porque silêncio só demonstraria talvez tristeza, conformidade – ou melhor, não daria ao episódio o tom de reconhecimento que as palmas sugerem. Barulho, barulho, barulho. Uma geração passou e a outra não a esquecerá. O belo momento iniciara despretensioso mas terminava emotivo à enésima potência. Não se tratava só de uma homenagem. Era a vida do Inter em pleno diálogo de gerações, estrepitando no seio da massa. Os mortos realmente governam os vivos, e está bom que seja assim.

Cada um de nós, naquele instante e talvez de maneira inconsciente aplaudiu a geração mais antiga, a construtora não só de um estádio mas, em suma, a edificadora da pedra fundamental do Internacional. Pela mão do agradecimento ao velho Arthur, um homem de olheiras fundas, fala mansa e cabelos brancos como a neve, uma geração reverenciou a outra, celebrou a outra, perenizou a outra. E para tanto orgulho e emoção, melhores porta-vozes são sempre a alegria e o assovio. Os Dallegraves já idos da nossa vida estiveram todos presentes no bonito momento.
Palmas, palmas, palmas. Melhor escolha não poderia haver. Uma geração vai passando e a outra fica, e que belo é ver todos estes nossos antecessores indo embora assim, sob uma torrente de aplausos. Hoje sentimos a falta dos que não viram as camisas brancas na manhã de Yokohama.

Amanhã, faltaremos nós nas conquistas dos nossos netos. E é por esse bonito equilíbrio da vida que o Inter, ao fim e ao cabo, continuará para sempre em sua senda eterna de vitórias. Palmas, palmas, palmas. Bravo, Dallegrave!

Os mortos realmente governam os vivos. E está bom, muito bom, que seja assim.

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