terça-feira, 20 de janeiro de 2009

UMA VIAGEM AO BEIRA-RIO.

Por Daniel Ricci Araújo


Passando pelo Largo da Epatur e tomando a rótula que dá ao carro o sentido da Avenida Borges de Medeiros, o jogo começa.

Uma ou outra divagação já salta pelo som da rádio AM: o Inter completo ou não, Índio está com febre, a revelação da base possui um pré-contrato de cinco anos. Cinco anos! Os novos fatos vão interagindo, ganhando a imaginação e nutrindo o debate animado dos caroneiros. E este Marquinhos, joga bola? Ah, acho que joga sim. O carro faz a volta, sobe a feia rampa urbana do centro da cidade e desemboca na Borges, onde uma multidão de prédios públicos abocanha cada um certa parte das calçadas à direita, numa procissão de cimento e escadarias que quase vão até o shopping center e, se não incomodam, tampouco agradam aqueles que, no mais das vezes, não gostam das autoridades e de suas ordens. Tenho uma causa e não recebo há cinco anos, diz um.

Ainda bem que existe o futebol

As camisas vermelhas já ocupam as calçadas. Em frente ao IPE, esse edifício cinza, triste e petrificado num mesmo entroncamento ocupado por buzinas e motoboys velocíssimos, já ali colorados com camisas regatas da Popular andam lado a lado com pais e filhos pequenos, estes últimos ambos meticulosamente de mãos dadas, quietos e contrastando com os gestos largos e barulhentos dos torcedores organizados. Observado pelo vidro do carro o menino reluz e dá pequenos saltos na calçada com um fardamento novíssimo do Inter, camisa 15 com o nome de D'Alessandro às costas e as longas meias esticadas até cobrir os pequeninos joelhos, ora, vejam como vai contente esse menino pela mão do seu pai. Falando na rádio, Fernando Carvalho anuncia pela enésima vez que o Inter tem o dever "de ser sempre competitivo". Enquanto o repórter anuncia a projeção da escalação, o carro para na sinaleira. O Rio Guaíba está à direita, um pouco longe ainda, e o tempo, um pouco nublado.

O sinal verde irrompe e o carro, andando não mais de duzentos metros em linha reta, precipita-se desabalado a uma imediata outra parte da cidade. A rua calçada com paralelepípedos lisos faz com que o automóvel, ao atritar suavemente seus pneus com o chão, provoque um barulho entre o grave e o agudo, mais para o primeiro, e parece que por isso se tem a impressão de praticar-se uma velocidade mais alta do que realmente se verifica pelo medidor. Do lado direito não mais aparecem os prédios públicos e seu movimento frenético – agora, o bonito parque municipal está diante de nós e é como se sua área verde e seus corredores de chão batido anunciassem a proximidade do Gigante, mesmo que não estejamos ainda tão perto dele, como se sabe. A área arborizada e o som do carro e das pedras da rua dão a sensação de um bairro residencial e, na verdade, é assim mesmo o mais correto a dizer pois estamos chegando perto de casa, uma segunda casa, esta pública, digamos assim, e que sempre se espera visitar, quem sabe, se pudéssemos, até mais do que a nossa própria, a qual muitas vezes só nos prende uma aborrecida obrigação de nela estar.

Agora as mangas e golas vermelhas e brancas cada vez mais se amontoam, um sem fim de números dez ou dezesseis às costas, algumas sete, cinco, outras nove, todas num ritual de passagem e aproximação impensado, intuitivo, como se as camisas fossem todas formigas labutando e rumando conscientemente ao destino comum, com uma harmonia de propósitos que dispensa qualquer acerto prévio. Andamos mais e volta o asfalto silencioso: à esquerda um viaduto marca o último obstáculo visível entre nós e o destino final. Depois uma suave dobra à direita e o primeiro leve engarrafamento, uma buzinada essencial e a visão interrompida da avenida desfaz-se, agora a nossa frente está subitamente descoberta como um lençol que cai ao chão, lá está o estádio, antes dele o ginásio e a tremenda bandeira que o anuncia.

O Beira-Rio encontra-se quase na nossa frente e o menor dos jogos, não importa, traz até ali uma confluência tremenda. Uma pequena Meca eventual e comum, mas mesmo assim não menos Meca tendo em vista seu significado de imprescindível habitualidade assim promulgada pelos frequentadores daquela bela e amena ocasião de sempre. Na frente do imponente portão ornamentado de mármore preto (será mesmo mármore?) que a atual diretoria mandou edificar, há como uma reunião de velhos conhecidos perante o bar de sempre, o de dentro do complexo ou, quem sabe, algum dos botecos do outro lado da rua, todos ali e acolá como se fossem uma família, rindo, conversando e tomando uma ou outra cerveja.

Hoje o Inter goleia, não é possível outro resultado. Não sei, jogos assim de repente encrespam. Que nada rapaz, peça mais uma aí, por favor. É como se todos estivessem em casa, uma casa talvez não como a primeira de todas, mas mesmo assim um lar, e como já dito muitas vezes mais esperado que o original, o primeiro deles, onde só repousamos a cabeça e dormimos o sono do cotidiano.

Tudo isso reinicia hoje, e está perfeito que o bom Deus nos guarde assim, donos desta casa e desta rotina, primeira e única, o trajeto petrificado e resistente a todas as mudanças. Hoje, pela Borges ou não, voltamos todos ao Beira-Rio.

Esteja você onde estiver, não se precisa pedir licença para entrar.

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