segunda-feira, 25 de maio de 2009

A IMPRENSA É VERMELHA.

Por Andreas Müller


Eu não escolhi ser jornalista. Apenas me tornei um. Eu tinha 16 anos e estava procurando uma maneira de juntar dinheiro para passar o Carnaval com os amigos em algum lugar entre Tramandaí e Laguna. Minha mãe, prestativa como sempre, foi quem apareceu com a solução mais imediata: uma amiga havia dito que o Jornal Ibiá, principal jornal de Montenegro, onde eu vivia, precisava de alguém para produzir um caderno para jovens, uma espécie de Kzuka à montenegrina, em troca de meio salário-mínimo – exatos R$ 56 por mês, na época. Pois bem: eu era jovem, conhecia bastante gente, tinha facilidade para escrever e não estava disposto a dispensar R$ 56 por mês. Lá fui eu, portanto.

É preciso que se diga: o ano era 1996 e o Grêmio, justamente o Grêmio, rumava para mais uma final de campeonato, desta vez do Brasileirão. Poucos meses antes, Paulo Nunes e Jardel haviam erguido o troféu da Copa Libertadores e transformado a cidade numa verdadeira Babilônia tricolor. Agora, tão pouco tempo depois, o Grêmio voltava a ser o único assunto possível em qualquer roda de chope em Montenegro – que, como todas as cidades do interior nascidas da imigração alemã, são majoritariamente gremistas. Eu, aliás, era um colorado quase heróico. Lá, uma parte das carreatas e buzinaços azuis passava não só pela Ramiro Barcelos, principal rua da cidade, mas também na frente da minha casa. Por pura crueldade.

Bem, mas entrei no estágio, tomei gosto pela coisa e em pouco tempo eu já estava habituado a caminhar pela cidade em busca de assuntos para o Jornal Ibiá. Tratava de tudo, absolutamente tudo que pudesse interessar a um adolescente como eu – e é óbvio que o futebol entrava na pauta com alguma regularidade. Foi o que aconteceu no final daquele ano, quando o Grêmio decidiu o Campeonato Brasileiro contra o bom time da Portuguesa e eu, disposto a dar a inevitável cobertura ao tema, acabei me metendo no meio da concentração tricolor, no dia da grande finalíssima, em pleno Hiper Lanches – a saber: mais tradicional lancheria de Montenegro, onde todos se reuniam para assistir aos jogos na frente de uma velha e engordurada TV de 42 polegadas.

Sentei-me no meio de alguns amigos, devidamente munido de uma máquina fotográfica e um bloquinho de anotações. O jogo começou, nem bem as garrafas de cerveja haviam se esvaziado e Paulo Nunes emendou o primeiro gol, abrindo as portas da Babilônia tricolor. Pessoas se atiravam por cima das mesas e rolavam no chão, copos se despedaçavam, pedaços de xisbúrguer atravessavam o ar e eu lá, fotografando tudo. Felizmente, o Grêmio precisava fazer dois para conquistar o título e, durante um bom tempo, eu pude me consolar imaginando como seria engraçado ver aquelas fotos depois, caso o placar se encerrasse em apenas 1 x 0. Mas o fato é que estávamos nos anos 90. No final daquela partida, Ailton pegaria um rebote improvável na entrada da área, fuzilaria as redes de Clemer e gravaria o nome do Grêmio na taça daquele ano. E eu, é claro, passaria o resto da noite fotografando uma festa absolutamente insuportável para o meu já sofrido coração colorado.

Chegando em casa – sim, eu trabalhava em casa –, tratei de deixar as paixões de lado e fazer um texto absolutamente isento. Disposto a me abster de todo e qualquer ressentimento colorado, eu fui além do equilíbrio: imaginei-me na pele de um torcedor gremista. E desatei, assim, a escrever a crônica mais tricolor jamais vista na imprensa montenegrina. Meus títulos eram líricos e azulados, minhas legendas vinham eivadas de orgulho e afetação por mais uma conquista da imortalidade tricolor. Não é preciso dizer que cheguei ao final do texto absolutamente arrasado. Pior do que suportar o buzinaço gremista era ter de elogiá-lo, exaltá-lo e enaltecê-lo. E foi justamente isso que eu fiz no fatídico domingo em que o Grêmio se consagrou bicampeão brasileiro, em 1996.

Felizmente, por uma dessas coisas que só o jornalismo diário explica, todo o épico material que eu produzi jamais foi publicado. Na última hora, meu editor achou que o jornal já estava dedicando espaço demais à festa gremista e não era necessário repeti-la na página que eu produzia. Assim, pegou algumas fotos minhas, alterou as legendas e fechou a edição sem a minha verborragia pseudogeraldina, numa decisão que foi fundamental para a minha auto-estima alvirrubra. Depois disso, nunca mais me aventurei a trabalhar com jornalismo esportivo. Especializei-me na editoria de economia e só voltei tratar de futebol aqui mesmo, no Final Sports – um espaço opinativo, no qual posso desfilar todo o meu coloradismo sem medo e sem compromisso com uma pretensa isenção.

Mas o fato é que tenho aquele material guardado até hoje. Lembro dele todas as vezes que abro os jornais da capital e me deparo com as manchetes a respeito da campanha gremista na Libertadores e, mais ainda, no Brasileirão. Lembro do que escrevi e de como me travesti em um autêntico gremista todas as vezes que vejo as análises sobre a genialidade de figuras como Wagner Mancini, Celso Roth e Paulo Autuori. E então eu penso, conformado: esses jornalistas aí só podem colorados. Sim, são todos uns colorados incorrigíveis, como eu. Sorria, amigo: a imprensa é vermelha, absurdamente vermelha! Tudo isso que eu e você lemos por aí é apenas resultado de um abissal esforço para disfarçar esse coloradismo iminente. Nada mais.

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